-->Wanda Marisa Gomes Siqueira*
Esse fenômeno é nacional e, por isso mesmo, preocupante. Em debates recentes na imprensa, juízes experientes têm manifestado receio de os tribunais estarem dando espaço para um número grande de profissionais sem a necessária experiência de vida.
A Folha escolheu cinco magistrados com menos de 30 anos para contar episódios de seu dia a dia e o que pensam sobre a profissão.
Confesso que fiquei impressionada com o que li, não sei o que é pior, se é a insegurança ou o sentimento de culpa de quem julga sem a necessária experiência de vida ou a dor e o sentimento de descrença na justiça de quem foi prejudicado por uma decisão impregnada de formalismo, pela falta de maturidade profissional e emocional do julgador.
Uma das juízas entrevistadas, demonstrou estar abalada com uma decisão que absolveu um jovem e, sem querer, assinou sua sentença de morte.
A jovem juíza chegou a redigir duas sentenças, uma absolvendo o rapaz e a outra mantendo-o preso, mas acabou optando pela absolvição, o rapaz deixou a cadeia e foi morto em um tiroteio no dia seguinte.
A juíza, com 26 anos, fez o que pode, estudou, examinou cuidadosamente a prova mas segundo ela "segui o preceito de que, na dúvida, deve-se agir em favor do réu".
Só que faltou-lhe experiência para prolatar uma sentença que concluísse que o melhor para o réu não era a liberdade física, porque esse jovem estava doente e precisava de tratamento adequado para poder livrar-se das drogas.
Concluiu a dedicada juíza: "Cumpri meu papel e tomei a decisão com base na lei. Não podia prever o que aconteceu depois".
O estado não pode submeter jovens juizes a pressões dessa ordem, pode recrutá-los se quiser, mas deve prepará-los no mínimo durante dez anos para que só depois eles possam julgar, a exemplo de países do primeiro mundo – o jurisdicionado tem esse direito e o estado tem esse dever.
A Constituição brasileira, nos termos de seu preâmbulo, foi destinada para garantir os direitos individuais e dentre os direitos individuais destaca-se o direito à vida, à educação, à saúde...
O julgador, sob esse enfoque, deve assumir o seu poder de criar, para tanto, deve estar preparado, e estar preparado não significa tão somente aprovação em concurso público.
Segundo o professor Juarez Freitas, in A SUBSTANCIAL INCONSTITUCIONALIDADE DA LEI INJUSTA, "deve o julgador democrático subordinar toda a sua exegese à perspectiva dialética de instituição e manutenção do Estado Democrático, zelando por seus fundamentos. Assim, se uma lei, ordinária ou não, contrariar a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da liberdade e o pluralismo político, deve ter afastada a sua incidência, pois esta é a forma correta de aplicá-la, considerando-se-a como anti-sistemática, pois, se aplicada, o que nela é contingente seria, positivamente, erguido à condição de necessário. Portanto é dever do juiz considerar inconstitucional toda e qualquer norma injusta, isto é, contrária à consolidação e à afirmação de um legítimo e objetivo – não retórico – Estado Democrático de Direito, respeitando os princípios transdogmáticos alojados no seio da própria Constituição".
Para ilustrar, cito um exemplo vivido neste final de ano por um jovem vestibulando, impedido pela UFRGS de realizar o concurso vestibular: "procurou-me para solucionar o impasse, recorri ao Poder Judiciário de 1º Grau pleiteando medida liminar que assegurasse ao vestibulando o direito de realizar as provas (dois jovens juízes de plantão indeferiram seu pedido ao argumento de que o edital é a lei do concurso).
Inconformada com o decisum, no final da tarde do dia 31dez, interpus Agravo de Instrumento no 2º Grau (o experiente Juiz Dr. Teori Zawaski, presidente em exercício do TRF, concedeu a liminar pleiteada). Coincidência, ou não, a decisão do segundo grau é fruto de larga experiência desse magistrado, para ele o direito do estudante está além do que estabelece o edital, segundo a decisão a lei do concurso não é o edital, mas a Constituição – decisões como essa é o que o jurisdicionado espera do Poder Judiciário.
Na prática do dia a dia, o julgador deve atender às exigências do bem social, portanto, é dever do julgador considerar inconstitucional toda e qualquer norma injusta, e acabar com a idéia do estado-autoritário de que, por exemplo, o edital é a lei do concurso.
Os jovens juízes têm mais dificuldade de decidir assim, devem ser poupados de viver o conflito de ter de decidir contra a sua consciência e apegados à lei. Todavia, para que possam julgar com segurança e serenidade, é necessário um longo percurso de vida.
A propósito, no dizer de Shapp, a configuração decisional não significa: "(...) então decisão a partir do arbítrio do juiz, mas o duro trabalho em direção de uma entre muitas decisões. Esta luta por vencer obstáculo é, então, sem dúvida, um processo cheio de vida que não pode ser determinado de antemão".
Um julgador democrático deve ter presente que de sua subjetividade depende a justiça, sendo assim, não pode extinguir processos como vêm fazendo em relação à matérias estudantis, por exemplo, sob pena de frustrar o civismo autêntico para manter o congelamento de ultrapassados dogmas.
Ainda, sobre a reportagem da Folha cabe destacar trechos da entrevista do Juiz Gustavo Antônio Pieroni Louzada, 24 anos: "O rap é revelador. Permite que conheçamos melhor as gírias da rua e a mentalidade da periferia. Entre juízes, costuma-se dizer, em tom de brincadeira, que os Racionais falam a língua dos réus".
Algumas regras fazem sentido, reconhece o juiz "outras guardam um evidente ranço conservador. Passam a idéia de que os magistrados estão acima da sociedade e não se misturam. Claro que um juiz deve se comportar com moderação, mas não pode jamais se isolar do mundo".
Como se vê, o jovem juiz é extremamente inteligente, mas pensa com a cabeça de quem tem 24 anos, não poderia ser diferente.
Essa sua perspectiva menos formalista é extremamente saudável, mas saberá ele escolher dentre as muitas significações que a norma oferece, a mais justa e conveniente, em consonância com os princípios fundamentais do Direito?
É de considerar que, por trás das decisões judiciais, há um universo efervescente de razões subterrâneas, pois cada julgador decide não só com o peso da sua cultura, das suas concepções de vida, da sua religião, da sua posição sócio-econômica, mas também sob a influência da fatores inconscientes.
Gostaria de destacar um fator que considero muito importante, que é o fato de termos sido educados sob o dogma da religião, que nos serve como guia prático para justificar várias coisas, mas sobretudo na moral de que o pecado contra o sexo é mais grave que o pecado contra a justiça, que o professor sempre tem razão, de que os poderosos podem transgredir as leis, de que os pobres é que vão para a cadeia, de que as mulheres não tinham direito a nada, inclusive, perdiam o direito a guarda dos filhos quando responsáveis pela ruptura do casamento.
Como o sistema jurídico não é um sistema lógico-formal, que se guia pela dedução, perante o qual bastaria demonstrar a lógica da legalidade de uma decisão, é absolutamente necessário que o julgador tenha sólida formação jurídica aliada à cultura humanística e experiência de vida.
Felizmente com o advento da Psicanálise hoje sabemos que a lógica jurídica é uma lógica diferente, não é só a lógica de São Tomás e Aristóteles, é sem dúvida alguma, a lógica de Freud e de Lacan.
Diante de situações jurídicas absolutamente iguais, nos deparamos com decisões diferentes porque o julgador não julga apenas com a lógica da legalidade – o jurisdicionado não entende essa lógica.
Sob esse enfoque, Freud e Lacan devem ser estudados pelos profissionais da carreira jurídica (juízes, promotores e advogados) como forma de evitar que esses profissionais coloquem em suas petições, pareceres e sentenças manifestações de sua própria neurose, com maior razão quando lhes falta experiência de vida.
Não se pode esquecer que dentre os profissionais da carreira jurídica os magistrados são os que devem estar melhor preparados psicologicamente para entender os males sociais e os males intrínsecos ao homem, que independem da situação social, que independem das relações humanas, sejam elas presididas pela justiça, pela prepotência ou pela injustiça.
Lembramos, por oportuno, o que afirma o psicanalista Jorge Forbes ao tecer comentários sobre o Tractatus logico-philosophicus de Wittgenstein: "Do que não se pode falar, melhor é calar-se". Contrariamente a essa assertiva do filósofo, a Psicanálise insiste no mais além, convida ao excesso, onde nada pode ser dito, tal como faz o poeta, há de ser inventado, esse ensinamento vale também para as decisões judiciais, se não está na lei, deve ser inventado para fazer justiça. O bonde da história está passando na casa dos juízes, se souberem se desvencilhar do legislativo formal, farão uma boa viagem, se não souberem, realmente não sei o que acontecerá porque o povo quer justiça e nos dizeres de Brecht: "Justiça é o pão do povo, logo, não pode faltar pão".
Um juiz com menos de 35 anos terá estrutura emocional e psicológica para tão árdua e dignificante tarefa?
Publicado no Diário da Manhã (Pelotas) em 10 de janeiro de 1999
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