Depois do XVI Congresso Brasileiro dos Magistrados, na cidade de Gramado/RS, o célebre diálogo entre advogado e juiz - imortalizado na obra de Calamandrei "Eles, os juízes, vistos por nós, os advogados" - precisa ser rememorado. O autor, em sua época, destacou-se como advogado polêmico e vocacionado para a luta, e por reconhecer que as qualidades dos magistrados excedem os seus defeitos ao afirmar: "Digo bem dos juízes, apesar de ser advogado. Se o digo, podem pois acreditar-me!"Passaram-se anos, desde então, e até hoje, advogados e juízes parecem não haver compreendido a profundidade e beleza das lições desse grande jurista, que de forma quase poética destaca as qualidades mais apreciadas nos magistrados - imparcialidade, serenidade, probidade - e nos advogados - paixão na luta pelo direito, combatividade, probidade.A releitura e a retomada desse diálogo são medidas oportunas a serem adotadas quando se fala em reforma e controle externo, não apenas do Poder Judiciário, mas em reforma e controle externo da OAB, pela classe dos advogados.Advogados e juízes sabem e sentem haver necessidade de reformas e de controle externo nessas instituições. Todavia, há divergências, ainda, quanto ao modo de concretizá-las.Advogados e juízes sabem e sentem que há, também, necessidade urgente de valorização, fortalecimento e resgate da imagem dos profissionais da carreira jurídica junto à sociedade.Nos últimos tempos, tanto a imagem dos juízes quanto a dos advogados vem sendo desgastada pelos deslizes e pela conduta aética de poucos, mas que atinge e macula a reputação de todos.Advogados e juízes precisam rememorar a obra de Calamandrei para compreenderem que a fragilidade ou a fortaleza desses profissionais tem repercussão direta no jurisdicionado e na sociedade.O caminho a ser seguido para que esses profissionais possam agir como verdadeiros agentes de transformação social, comprometidos com o Direito e a Justiça, é, sem dúvida alguma, o diálogo. Para tanto, impõe-se que esse diálogo seja feito à luz dos ensinamentos de Calamandrei:O JUIZ: À missão do juiz é também impiedosa e tu mesmo és, às vezes impiedoso para com os juízes. Quantas vezes, sob uma beca de juiz, se entrechocam as paixões da humanidade dolorosa! À angústia de um amor traído; o horror de um filho que morre!...Mas há que fazer calar esses sentimentos Quando se está em audiência e o coração do juiz deve ser livre, ainda quando esmagado pelas afeições mais íntimas. Ele, que sente que como um homem que a causa que deve decidir é mil vezes menos importante que a sua dor, deve considerar esta como uma coisa sem importância em comparação com a causa, ainda que mais fútil, que tenha a julgar. E ao passo que o homem soluça interiormente ao pensar no filho que morreu na véspera, o magistrado tem que dar atenção ao advogado que, sem piedade, durante três horas lhe explica os motivos pelos quais um inquilino não pagou a renda.O ADVOGADO: Acusas o advogado de não ter dó de ti quando fala, como se acaso o advogado falasse por prazer. Mas já pensaste alguma vez na dor desse homem, que convencido de que defende uma causa justa, e falando para transmitir ao juiz a sua convicção, se apercebe de que não consegue o seu fim e fala obstinado, angustiosamente convencido de que deve, mesmo que estoure, acrescentar ainda qualquer coisa para fazer triunfar a verdade? Nunca viste, do alto de tua bancada, um advogado no meio das alegações empalidecer e pôr a mão no coração num gesto rápido e doloroso, que o ímpeto do discurso logo apaga?Com o andar dos tempos, se a morte não o ceifar no meio de uma defesa, pouco a pouco há de sentir a impiedosa solidão da velhice; verá os clientes seguirem a moda e preferirem a audácia dos novos à prudência dos velhos, que ficam abandonados nos seus gabinetes poeirentos sem que ninguém os procure, a olharem desiludidos, os armários onde durante cinqüenta anos empilharam pastas agora inúteis, que os herdeiros venderão a peso, sem sequer abrir".Depreende-se, pela leitura do diálogo entre juiz e advogado, que o autor quis destacar a reciprocidade que existe na relação profissional de ambos, fazendo-nos compreender, numa linguagem impregnada de romantismo, que um e outro devem buscar a compreensão mútua para que a missão humana e social dos tribunais possa ser cumprida com grandeza e imparcialidade.Creio que restabelecer esse diálogo é a nossa grande causa, que é grande não por ser dos juízes e dos advogados, mas por ser a grande causa de cada um dos cidadãos brasileiros. Que somente terão justiça de qualidade quando os magistrados e advogados se dispuserem a falar do mal-estar existente na relação profissional entre ambos, quando puderem falar de seus defeitos, de suas qualidades, das dificuldades e angústias vividas sob a beca de um e a toga de outro.O mal-estar que os juízes sentem é quase o mesmo que aflige os advogados, porque nos escritórios de advocacia e nos gabinetes dos juízes é que deságüam as mazelas, o sentimento de dor, a insegurança e o sentimento de injustiça daqueles que lutam pela defesa de seus direitos e que ainda confiam na JUSTIÇA.Esse mal-estar sentido nos faz lembrar o mal-estar tão bem trabalhado por Freud em sua obra. E por falar em Freud, quem sabe um e outro – juiz e advogado - pudessem buscar no divã o alívio desse mal-estar, a exemplo do que fazem os profissionais dessas áreas em países do primeiro mundo e, bem próximo de nós, na Argentina.O jurisdicionado precisa saber que o juiz, dentre outros poderes, pode protegê-lo de leis injustas amparado nos artigos 4º e 5º da Lei de Introdução ao Código Civil(LICC) que assim dispõem: "quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais do direito; na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum".Com o fortalecimento do Poder Judiciário, esses dois artigos de lei suscitados e aplicados, com a vontade firme de advogados e juízes, vão minimizar as mazelas sociais no Brasil.Não podemos admitir os cidadãos brasileiros pensarem que os magistrados reuniram-se em Gramado tão somente para reivindicar melhorias salariais; admitir esse entendimento seria deixar consumar-se uma grave injustiça, porque, dentre os Três Poderes, sem dúvida alguma, é o Judiciário que tem demonstrado sentir mal-estar diante da situação em que se encontra a sociedade brasileira.Sabe-se que há problemas dentro do Poder Judiciário, mas há que reconhecer que pelo menos os juízes estão preocupados com esses problemas, começaram a debater essas questões na imprensa, estão buscando o autocontrole - aparentemente utópico, mas possível de concretizar se houver desejo para tanto.Cabe indagar: será que os membros do Poder Executivo sentem esse mal-estar? E se o sentem, o que têm feito no sentido de adotar medidas concretas para atenderem as demandas sociais, na condição de representantes do povo?O Poder Executivo Federal, por exemplo, fala de estabilidade econômica, entretanto, omite que a frágil estabilidade é sustentada às custas do empobrecimento do povo brasileiro - alto índice de desemprego, dilapidação do patrimônio público, aniquilamento do funcionalismo público, supressão das garantias constitucionais.Advogados e juízes enfrentam momentos difíceis. Os primeiros com a auto- estima baixa e cercados de injustiçados; mas, paradoxalmente, deles distantes. Os demais, mal remunerados e cercados por milhares de processos que não findam porque as leis processuais os entravam. Cabe indagar, ainda, se advogados têm tido oportunidade, e tempo, para discutirem suas questões e falarem do mal-estar que advém da escuta das injustiças relatadas por seus clientes? Calamandrei há de nos inspirar. É preciso rememorar e retomar o celebre diálogo entre juízes e advogados, sob pena de deixar que o frio computador domine e tiranize suas relações, causando prejuízos irreparáveis ao jurisdicionado.
Publicado no Jornal do Comércio em 26/06/2001
Wanda Siqueira - advogada
Publicado no Jornal do Comércio em 26/06/2001
Wanda Siqueira - advogada
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