24 de novembro de 2010

Lição Introdutória: A Tragédia Antígone.

DE QUE ADIANTA ESTUDAR DIREITO E HISTÓRIA SE A  TRAGÈDIA DE ANTÍGONA SE REPETE SÉCULO APÓS SÉCULO?
A PSICANÁLISE DE FREUD DARÁ CONTA DESSA TRAGÉDIA ? 
Wanda Siqueira


A tragédia Antígone discute o conflito entre o Direito Natural – o Direito considerado pelos antigos como sendo de origem divina e aceito ipso facto como costumeiro ou consuetudinário – e o Direito que toma forma jurídica nas leis estabelecidas pelo governante, tradicionalmente denominado Direito Positivo.
A narrativa de Sófocles segue a tradição mitológica. Após a desgraça de Édipo, seus dois filhos, Etéocles e Polinice disputam a posse do trono. Trava-se a luta, perecendo no mesmo dia os dois irmãos, ambos mortalmente feridos no duelo que travaram. Creonte, impondo-se então como tirano de Tebas, resolve prestar honras fúnebres a Etéocles, ao passo que proíbe, sob pena de morte, que se dê sepultura ao corpo de Polinice, para que fique exposto às aves carniceiras aquele que recorreu à aliança com os Argivos (povo inimigo) para conquistar o poder em sua terra.
Antígone, exemplo de amor fraternal, resolve expor-se ao perigo, e, contrariando o decreto do tirano, presta ao infeliz Polinice, seu irmão, o piedoso serviço das honras e dos rituais funerários, sob o risco de ser condenada à morte pela transgressão. Quando interrogada por Creonte, que se considera duplamente afrontado pelo desrespeito a uma lei em vigor e pela atitude criminosa vir de uma mulher, Antígone responde:
"Sim, porque não foi Júpiter que a promulgou; e a Justiça, a deusa que habita com as divindades subterrâneas, jamais estabeleceu tal decreto entre os humanos; nem eu creio que teu édito tenha força bastante para conferir a um mortal o poder de infringir as leis divinas, que nunca foram escritas, mas são irrevogáveis; não existem a partir de ontem, ou de hoje; são eternas sim! E ninguém sabe desde quando vigoram! Tais decretos, eu, que não temo o poder de homem algum, posso violar sem que por isso me venham punir os deuses! Que vou morrer, eu bem sei; é inevitável; e morreria mesmo sem a tua proclamação." (p. 227/228)
Na opinião de muitos esta passagem contém os mais belos versos de Sófocles. Antígone afronta, destemerosa, o poder e a cólera do próprio rei. Ao desobedecer ao decreto e ainda se alegrar com o ato, Antígone argumenta que os deuses exigem que se apliquem os mesmos ritos a todos os mortais. E ao ouvir de Creonte que nunca um inimigo lhe será querido, mesmo após a sua morte, profere a bela frase: "Eu não nasci para partilhar de ódio, mas somente de amor!" (p. 233)
Em diversas passagens, Creonte representa a tese do juspositivismo referente à identidade entre Direito e mandatos, como no positivismo jurídico normativo e legalista: os termos Lei e Direito são essencialmente equivalentes; em consequência, a lei que se manifesta injusta constitui Direito formal e não carece de validade. Veja-se este trecho: "Quem, por orgulho e arrogância, queira violar a lei, e sobrepor-se aos que governam, nunca merecem meus encômios. O homem que a cidade escolheu para chefe deve ser obedecido em tudo, quer seus atos pareçam justos, quer não." (grifo nosso) (p. 243)
Quando surge em cena Hémon, filho de Creonte e noivo de Antígone, a suplicar pela vida de sua amada, trava-se o seguinte diálogo:
"Hémon – Ouve: não há Estado algum que pertença a um único homem!
Creonte – Não pertence a cidade, então, a seu governante?
Hémon – Só num país inteiramente deserto terias o direito de governar sozinho!
Creonte – Bem se percebe que ele se tornou aliado dessa mulher!
Hémon – Só se tu te supões mulher, porque é pensando em ti que assim falo.
Creonte – Miserável! Por que te mostras em desacordo com teu pai?
Hémon – Por que te vejo renegar os ditames da Justiça!
Creonte – Por acaso eu a ofendo, sustentando minha autoridade?
Hémon – Mas tu não a sustentas calcando aos pés os preceitos que emanam dos deuses!"
(p. 247/248)


Até mesmo o Corifeu revolta-se contra a lei do governante e não pode conter suas lágrimas ao ver Antígone dirigindo-se ao túmulo. Reconhece a ação piedosa de prestar culto aos mortos, mas quem exerce o poder não pode consentir em ser desobedecido: "tu ofendeste a autoridade" (p. 255), diz ele.
O crime de Antígone foi obedecer aos ditames da "lei divina", que prescreve o sepultamento digno ao cadáver, principalmente quando se trata de um irmão de sangue. Mas ao cumprir a "lei natural" (jus naturae), desobedeceu à norma legal instituída pelos homens, ao Direito posto (jus positum) – ou melhor, imposto - pelo governante.
A questão não é, neste momento, discutir os fundamentos do Direito, quer em seus princípios jusnaturalistas, quer em suas bases juspositivistas. A tragédia Antígone já antevê, através do gênio de Sófocles, o antagonismo entre Lei e Justiça e o problema da vigência das leis injustas. Os adeptos do positivismo jurídico mais radical não aceitam o problema, pois o valor não é objeto da pesquisa jurídica. O ato de justiça consiste na aplicação da regra ao caso concreto. Não pode haver influência de elementos extra legem na definição do Direito Objetivo. Daí o puro legalismo ou o codicismo. Já os partidários do Direito Natural se identificam com os imperativos do justo, quando, sem desprezar o sistema de legalidade, refletem na instância ética que transcende a ordem positiva e ocupam-se com juízos de valor. O jusnaturalismo refere-se a uma ordem jurídica ideal, no sentido de relacionar Moral e Direito e de buscar nos princípios éticos e/ou antropológicos a fundamentação do Direito.
O princípio do Direito Natural é jus quia justum: o direito é o que é justo. Como lema, prefere-se até mesmo a desordem ou a ilegalidade do que a injustiça: Pereat mundus, fiat justitia! Para o defensores do positivismo jurídico, o princípio é jus quia jussum: o direito é o que é ordenado enquanto direito. Como lema, os juspositivistas preferem a injustiça à desordem ou ilegalidade: Dura lex, sed lex!
Responda: quem cometeu algum crime: Antígone ou Creonte? Ou de outro modo: qual a fonte ou fundamento jurídico para considerar crime o ato fraternal, respeitoso e costumeiro de Antígone? Qual a fonte ou fundamento do poder legiferante de Creonte? O que equivale a perguntar: qual a legitimidade do poder político e do Estado? Responder a estas e a várias outras questões decorrentes da leitura da tragédia Antígone é um excelente exercício de compreensão crítico-sistemática do Direito, ou seja, uma boa maneira de principiar a prática da reflexão crítica em Filosofia do Direito.
Bibliografia:
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 1995.
GUIMARÃES, Ylves José de Miranda. Direito Natural. Visão Metafísica e Antropológica. Rio de janeiro: Forense Universitária, 1991.
HERVADA, Javier. Crítica Introdutória ao Direito Natural. Porto: Resjurídica, sem data.
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. Rio de Janeiro: Saraiva, 1999.
SÓFOCLES. Antígone. Rio de Janeiro 

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