22 de junho de 2001

É tempo de rememorar Calamandrei II

Neste momento de discussão nacional sobre os vencimentos dos magistrados, nós, os advogados, temos, o dever de auxiliá-los em sua luta por salários justos e dignos, eis que temos consciência de que não poderá haver Poder Judiciário forte e independente com juízes mal remunerados e desvalorizados pela sociedade – como também não haverá justiça social de qualidade com uma advocacia fragilizada.O presidente do Supremo Tribunal Federal afirmou em Gramado que: "Juiz não entre em grave". A posição do presidente é questionável, eis que aceitá-la equivale a admitir que o juiz é um ser diferente, não tem necessidades materiais e humanas. Como poderá o juiz atender às reivindicações de milhares de jurisdicionados (grevistas, desempregados, endividados, estudantes que perderam o direito ao crédito educativo, pensionistas, professores, funcionários públicos...) se ele não puder exercitar o mais elementar direito assegurado ao mais humilde dos cidadãos? Se um juiz não pode lutar por seus direitos, como poderá assegurar o direito daqueles que têm sede de justiça e fome de pão?Se o presidente do STF tivesse dito: "Juiz não precisará lecionar em universidades públicas ou particular porque deve dedicar-se com exclusividade à Magistratura, para manter a independência que o cargo exige, sem dúvida alguma, receberia o aplauso da sociedade, em especial, dos professores e alunos, que esperam que as ações contra as universidades sejam julgadas com imparcialidade pelo Poder Judiciário.A cidadania deve compreender que a independência do Poder Judiciário deve ser defendida por todos nós, em especial, nesse momento em que o Poder Executivo e alguns membros do Poder Legislativo, à sombra da proposta de reforma do Poder Judiciário visam enfraquecer a instituição e o poder dos juízes (súmula vinculante).Os advogados querem juízes independentes, imparciais, probos e com sólida cultura humanística para entender e minimizar em seus julgados a dor dos fracos e oprimidos. Os juízes querem advogados que sejam, também independentes, probos, preparados para o exercício da advocacia, firmes em suas convicções, comprometidos com a ética, para que possam ser "indispensáveis à administração da justiça e invioláveis pelos seus atos e manifestações no exercício da profissão" (artigo 133 da CF).É tempo de rememorar Piero Calamandrei, autor da obra "Eles, os juízes, visto por nós, os advogados, eis que a mesma retrata a melancolia sentida já naquela época pela ‘gente do foro’, expressa no célebre diálogo entre um juiz e um advogado.No diálogo, advogado e juiz falam das dificuldades, da angústia e da dor de cada um no exercício de suas funções:O ADVOGADO – Feliz és tu, juiz, que podes seguir no teu trabalho o regulado ritmo do horário da profissão e sentir em tua volta, quando trabalhas, o respeito profundo da sala de audiência ou o secreto recolhimento da câmara de conselho.Quando entram os magistrados, finda todo o barulho. A tua obra faz-se longe dos tumultos, sem imprevisto e sem precipitações ignoras a ânsia da improvisação, as surpresas da última hora; não te cansas à procura dos argumentos, visto que és chamado apenas para escolher entre o que nós, advogados, encontramos, nós que para ti fazemos o trabalho árduo da pesquisa. Ao passo que os outros homens se assentam para descansar, tu sentas-te para trabalhar e aos trabalhos de maior responsabilidade chama-lhe até "assentos". A tarefa do advogado não conhece horário nem trégua: cada processo abre um novo caminho, cada cliente suscita um novo enigma. O advogado deve estar ao mesmo tempo em cem lugares, bem como o seu espírito deve seguir ao mesmo tempo cem pistas. É aos clientes e não a ele que pertence as suas horas noturnas e que são talvez aquelas em que atormentadamente congemina os mais preciosos argumentos. Ele, advogado, é, material e espiritualmente, o protótipo do irrequieto sempre alerta, enquanto tu és, oh juiz, a olímpica imobilidade, que sem, pressa espera.O JUIZ – Mas tu não sabes, advogado, qual a multidão de causas, qual o vaivém de incertezas, que se agitam, às vezes, na aparente imobilidade do magistrado. Se freqüentes vezes durante a noite, sentes bater à tua porta a petulância do cliente importuno, mais freqüentemente eu sinto, até de madrugada, martelar no coração a angústia da dúvida. Qual o juiz que pode dormir na véspera de uma condenação à morte? E, depois, o peso da sentença proferida é apenas sobre o juiz que cai; o pavor do erro, o angustioso pensamento de ser atirado para a cadeia com um inocente, são obcecações que o fazem vergar. Os juízes já não sabem rir, visto na sua frente se imprimir com os anos, tal como numa máscara, o espasmo da piedade a combater com o rigor. Quando, pela defesa que fizeste, cumpriste o teu dever, podes, oh advogado, esperar calmamente, mas o juiz, esse, se consegue ser impassível, o que não pode é ter serenidade.O ADVOGADO – Mas tu julgas que o advogado pode ser sereno? Não reparaste ainda, do alto grau da tua cátedra, que os advogados embranquecem precocemente e morrem mais cedo do que tu? O advogado vive cem vidas numa vida só, atormentam-no cem destinos diversos. Mesmo se, durante uma semana por ano, consegue isolar-se no alto de um monte ou a bordo de um veleiro, acompanham-no inexoravelmente nas suas férias as dores, a cupidez, as esperanças de quem o procura para se aliviar de suas penas (...).Falas ainda na ansiedade do julgamento, mas nunca pensaste no tormento do advogado, que sabe ou julga saber, que da sua habilidade depende em grande parte a orientação de teu julgado. Ao advogado compete encontrar o argumento que saiba convencer-te e, se errares, a culpa é dele que não conseguiu a tempo de evitar que errasses. Ninguém pode descrever a angústia do advogado, que sabe que seu cliente está inocente, mas não consegue demonstrá-lo; que se sente inferior ou impotente perante a mestria ou as vantagens do advogado adversário; que depois de irreparável derrota descobre finalmente, mas tarde já, o argumento que lhe poderia ter dado a justa vitória.O JUIZ – Compreendo, mas, no entanto, como é grande, para um advogado, o prêmio para o gozo da vitória depois de certas audiências! Durante o processo o fulcro de toda a curiosidade e de todas as simpatias é o advogado; o público vive, uma a uma, todas as suas emoções e entusiasma-se com a sua eloqüência. O Juiz, no fundo da sala, está silencioso e imóvel, como um inútil complemento decorativo da cena, e se, por fim, triunfa a verdade, os aplausos não são para o juiz, que soube destilá-la através do tumulto do seu coração, mas para o advogado que aparece sempre como o triunfador da justiça, para o qual vão, prêmio do obscuro tormento do juiz, a glória e a riqueza.Passaram-se anos, mudou o estilo da escrita, mudaram os costumes, mas não mudou a angústia, a dor e as dificuldades desses profissionais na busca incessante da melhor distribuição da justiça.O diálogo, utopicamente concebido por Calamandrei ainda não se estabeleceu, por isso, é bom rememorá-lo, eis que ele continua atual tanto quanto necessário.Conclui-se, que a vida profissional de advogados e juízes, apesar de entrelaçada, paradoxalmente, está por demais distanciada. Falta diálogo franco e produtivo sobre as grandes questões que os afligem. As mudanças históricas e as transformações sociais que o povo brasileiro vive estão a exigir que juízes e advogados dialoguem, despidos de quaisquer ressentimentos, a fim de que haja uma melhor e mais célere distribuição da justiça. É tempo de rememorar os ensinamentos de Calamandrei: "Para encontrar a Justiça, é preciso ser-lhe fiel. Como todas as divindades, só se manifesta àqueles que nela crêem".

Publicado em 22 de junho de 2001 no Jornal do Comércio
Wanda Siqueira - advogada